Artigo Conjur – Ainda precisamos falar sobre o abuso de direito

Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto é doutor em Direito pela Universidade de Fortaleza, Procurador do Estado do Ceará, e sócio do escritório Pedrosa & Peixoto Advogados. Autor de Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung e Abuse of Fundamental Rights: From the private law doctrines to a constitutional theory. Vencedor do Prémio FIBE 2023 e recebedor de menção honrosa no Prêmio CAPES de Teses 2023.

PARTE 1 (4/12/2023): Leia no Conjur

A discussão contemporânea sobre o assunto ‘abuso de direito’ [‘abuso do direito’] é uma daquelas que causa, a princípio, sonolência na maioria dos juristas: o que mais poderia ter sobrado para se falar, sobre um tema que já vem sendo discutido na literatura, sem rupturas significativas, ao menos desde 1901?[1] Anota-se que, do início do século passado até 1913, ao menos vinte teses de doutorado haviam sido publicadas na França e na Bélgica, e praticamente todos os grandes civilistas à época haviam marcado posição sobre o assunto.[2]

Ainda assim, quando comecei a pesquisar sobre o abuso de direitos fundamentais — o tema específico de meu original interesse —, ainda parecia faltar algo consolidado, definitivo (na medida em que algo pode ser considerado cientificamente ’definitivo’): o que, afinal, é o abuso de direito civilista, noção da qual a teoria dos direitos fundamentais explicitamente procurou se apropriar, por meio de uma “transposição”?[3]

Esse foi o primeiro desafio da minha tese de doutorado defendida na Universidade de Fortaleza, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Rocha Dias. A tese foi vencedora do Prémio FIBE 2023, e recebeu menção honrosa no Prêmio CAPES 2023; com grandes adaptações, foi publicada em inglês, em dois volumes: Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung e Abuse of Fundamental Rights: From the private law doctrines to a constitutional theory.

A convite do Prof. Dr. Otavio Luiz Rodrigues Junior, coordenador da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, apresento (com muita gratidão pela oportunidade), em coluna dividida em duas partes, um curtíssimo sumário das minhas principais ideias sobre as doutrinas civilistas do abuso de direito.

A abstração dos Tatbestände como chave para compreensão do abuso de direito

Quando se lê a primeira tese do pioneiro na discussão sobre o abuso de direitos fundamentais, o alemão Hans-Ulrich Gallwas (“A doutrina civilista do abuso de direitos liga-se à formulação abstrata dos Tatbestände”),[4] percebe-se que o termo central é Tatbestände (no singular: Tatbestand), estranhamente alheio à cultura jurídica do Brasil e das demais culturas não germanófonas.

O que os Tatbestände têm a ver com o caso julgado pela Corte de Apelação francesa de Colmar em 2 de maio de 1855 (affaire Doerr), considerado pela quase totalidade da literatura especializada como o marco inicial das doutrinas de abuso de direito, e no qual se considerou ser ilícita a construção de uma falsa chaminé com o único objeto de diminuir a incidência de luz de sol no vizinho?[5] Ou com o caso Clement-Bayard (Corte de Cassação francesa, 3 ago. 1915), o primeiro registro do uso jurisprudencial da expressão abus de droit, em que se concluiu que a instalação de lanças de ferro no limite de uma propriedade vizinha a uma fábrica de dirigíveis não era lícita?[6] Pascal estava certo, no caso das doutrinas de abuso: “Um meridiano decide a verdade. […] Justiça agradável que um rio delimita!”?[7] A compreensão do abuso de direito realmente muda quando se atravessa o rio Reno, da França para a Alemanha?

Há uma percepção geral de que o que hoje se entende por ‘abuso de direito’, em um tronco que vai desde o art. 281 do Código Civil grego até o art. 187 do nosso Código Civil, passando pelo art. 334 do Código Civil português (todos essencialmente iguais), é um “cruzamento de influências”[8] de duas tradições: a franco-belga e a germânica. Em todos esses dispositivos, considera-se haver abusos quando, no exercício de algum direito, violam-se os deveres impostos pela boa-fé objetiva ou pelos bons costumes, ou quando se desvia da finalidade econômica ou social[9]. Essa última abordagem, de desvio da finalidade, é típica da tradição franco-belga de abus de droit, que tem em Louis Josserand seu maior expoente.[10] Mas Josserand, até onde se sabe, nunca tratou explicitamente de Tatbestände — assim como não trataram os seus seguidores, na busca pelo “espírito” dos direitos.[11]

As histórias do abuso de direito

Sendo assim, questiona-se a existência de uma tradição única de abuso de direito, ou de duas (ou mais) tradições distintas, apenas convenientemente agrupadas sob um título único: é o que eu chamo de as histórias do abuso de direito.

A resposta é complexa: se, por um lado, é inegável que, nas duas raízes, a noção de abuso de direito exerce uma mesma função, por outro, não se pode ignorar que a maneira de operacionalização é completamente distinta. Além disso, não é possível estabelecer uma estanqueidade entre as duas raízes, dada a recepção da teoria de Josserand ocorrida na Alemanha durante o período do nazismo (o que suscita ainda a necessidade de remexer-se o “passado marrom”[12] das doutrinas de abus de droit, chave para a compreensão da tradição germânica, que se apresenta justamente como seu maior “contraprojeto”[13]).

Abuso de direito como ilicitude atípica

Começo com as concordâncias funcionais: um traço comum que une as tradições germânica e franco-belga[14] é, de fato, a adoção de uma concepção abstrata dos Tatbestände (ainda que não necessariamente sob esse título). É chegado o momento, então, de enfrentar esse ponto: o termo alemão Tatbestand, de muito difícil tradução,[15] denota, literalmente “a existência (do verbo bestehen) do facto (Tat), o facto existente”.[16] Na definição clássica de Karl Engisch, Tatbestand é aquilo a que a norma jurídica liga consequências jurídicas.[17] Pode-se adotar aqui, então, como uma tradução menos inexata, a de Marcelo Neves: Tatbestand é o “pressuposto abstrato da incidência da norma”.[18]

É justamente essa abstração do Tatbestand, explicitamente admitida ou não, que está presente nas mais diversas concepções de abuso de direito: como desvio de finalidade (Louis Josserand, Wolfgang Siebert, Alvino Lima), como intencionalidade danosa (Rui Stoco), como desproporção entre vantagens e prejuízos (Jean Zuylen, Giorgio Pino, Thierry Léonard), como transgressão moral (Jean Dabin, Paulo Dourado de Gusmão), como injustiça (Luis Alberto Warat, Christoph Knödler, Lino Rodriguez-Arias), como violação à boa-fé objetiva (Hans-Ulrich Gallwas, Fabrizio Piraino, Tanja Rudnik), como violação ao Direito (Carlos Fernández Sessarego, Tobias Leidner, Bruno Miragem), como violação ao valor subjacente (Virgílio Giorgianni, António Menezes Cordeiro, António Castanheira Neves, Fernando Augusto Cunha de Sá, Rosalice Pinheiro, Vladimir Cardoso, Eduardo Souza, Anderson Schreiber), como violação a princípios (Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero, Aurelio Gentili, Laurent Eck, Pedro Baptista Martins, Heloísa Carpena, José Luiz Levy, Luiz Souza, Eduardo Jordão).

Quando constato que a primeira tese de Gallwas está correta, o que pretendo afirmar é que a noção de abuso de direito, tanto na tradição franco-belga como na tradição germânica, está indissociavelmente conectada a ideia de, em um plano abstrato (i.e., ante casum), ter-se um direito.

Essa ideia de abstração é extremamente problemática em um pensamento alinhado à Hermenêutica Filosófica de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, um ponto sempre marcado (com razão teórica) por Lênio Streck[19] — na concepção de Direito de Streck, não há, portanto, espaço para o abuso de direito. É possível, contudo, caracterizar a noção de abuso de direito como uma figura de transição: com esse sentido, autores inequivocamente alinhados à Hermenêutica Filosófica[20] tratam do abuso de direito (como Josef Esser, Tobias Leidner, Jorge Reis Novais e António Castanheira Neves). A mais clara formulação dessa ideia é de Leidner — um autor alinhado à Doutrina Estruturante do Direito de Friedrich Müller —, segundo quem as doutrinas do abuso de direito devem assumir a possibilidade de identificação de “limites abstratos a priori da formulação textual” (i.e., para haver abuso, antes a formulação textual deve “cobrir o caso concreto de uma forma abstrato-geral”).[21] Leidner admite pragmaticamente a existência desses “limites abstratos” (porque essa é a autocompreensão dos tribunais sobre a sua tarefa institucional), mesmo ante a reserva de teoricamente não o fazer (assim como teoricamente não os admite Müller)[22].

Há, no dizer de Claus-Wilhelm Canaris, uma compreensão jurídica inercial de favor libertatis, i.e., a presunção de que as relações interpessoais estão, a princípio, protegidas contra intervenções estatais.[23] Como decorrência, a formulação dos Tatbestände permissivos (os pressupostos abstratos para consequências jurídicas também permissivas), no processo de aplicação/desenvolvimento posterior/criação do Direito, adota um modelo tendencialmente ampliativo: tudo aquilo que pode ser considerado um elemento desencadeador de uma permissão jurídica é abstratamente incluído no Tatbestand, autorizando a compreensão de que se tem, como consequência jurídica, o direito de se fazer o que quer que seja permitido pela norma jurídica.[24] Se o texto normativo estabelece que “A propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta” (art. 544 do Código Civil francês),[25] há a compreensão de que o fato de se ter a propriedade de um imóvel (o Tatbestand) dá ao titular o direito de instalar chaminés ou lanças de ferro (se essas concretamente lhe trazem algum proveito não é questão relevante): têm-se aí, abstratamente, exercícios de um abstrato direito de propriedade, do qual se pode abusar.

Discurso de abuso de direito como “atalho” para a justificação da valoração de ilicitude concreta

Quando se fala que houve abuso de direito de propriedade na instalação de chaminés ou lanças de ferro, o que se está afirmando é que, mesmo estando esses comportamentos no espectro de exercícios abstratamente permitidos, há uma ilicitude concreta. Cada uma das abordagens do abuso de direito (eu prefiro, em uma simplificação didática, trabalhar com quatro grandes abordagens: intencionalidade danosa, desvio de finalidade, violação à boa-fé objetiva, desrespeito aos bons costumes) consolida linhas de justificação para a concreta valoração de ilicitude (ilicitude atípica), mesmo ante a abstrata permissão do comportamento (licitude típica).

Essas linhas de justificação — enunciados jurídicos, princípios, modelos, tipos, costumes, concepções socio-éticas, conceitos dogmáticos, normas técnicas, esquemas de ponderação, catálogos de topoi e esquemas de teste[26] — têm função de “atalho”, i.e., permitem que, na dificílima tarefa de demonstrar a ilicitude concreta de um comportamento abstratamente tido como lícito, esteja à disposição uma “dogmática de utilização”.[27]

Até aqui, vai o traço comum entre as tradições franco-belga e germânica do abuso de direito. Na próxima parte, explorarei o ponto mais importante de uma teoria do abuso de direito: as diferenças entre elas.

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PARTE 2 (11/12/2023): Leia no Conjur

Tratei, na primeira parte desta coluna, sobre o traço comum das tradições franco-belga e germânica: a concepção abstrata de Tatbestände permissivos, aos quais se ligam consequências jurídicas também permissivas. A dogmática de abuso de direito (uma dogmática de utilização) serve para “atalhar” uma justificação complexa: a da valoração de que um comportamento abstratamente permitido (licitude típica) é concretamente proibido (ilicitude atípica).

Param aí as coincidências entre as duas tradições. As diferenças entre o abuso de direito franco-belga (abus de droit) e o abuso de direito germânico (allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung) são tão marcadas quanto aquelas, de modo geral, entre as duas culturas jurídicas.

A tradição franco-belga de abus de droit

Começo com a tradição franco-belga de abus de droit. O primeiro registro de menção jurisprudencial explícita ao abus de droit está na decisão Clement-Bayard (Corte de Cassação francesa, 3 ago. 1915), que adota uma concepção aparentemente simples: abusa de um direito aquele, a quem a lei atribui uma potestade por interpretação ‘em abstrato’ do texto normativo, que concretamente o exerce com a finalidade de causar dano a outrem.[28] É a abordagem que intitulo de abuso de direito por intencionalidade danosa. Desde logo, no entanto, já se percebeu que nem toda intencionalidade danosa poderia caracterizar o abuso de direito: há direitos que, por si só, servem para causar danos (pense-se no direito à greve, no direito à convocação de boicotes, e no direito à livre concorrência). O próprio Louis Josserand, assim, procurou diferenciar os direitos causados (abusáveis) dos direitos não causados (não abusáveis). A diferença, para Josserand, seria o texto normativo. Josserand, no entanto, acaba parando em um beco sem saída dogmático, ao tentar justificar que o art. 173 do Código Civil francês (“O pai, a mãe e, na ausência de pai ou mãe, os avós podem se opor ao casamento de seus filhos e descendentes, mesmo que sejam maiores de idade”)[29] veicularia um direito não abusável, enquanto o art. 544 (“A propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta”)[30] veicularia um direito abusável:[31] se há algo que caracterize um dos direitos como abusável e o outro como não abusável, esse algo certamente não está nos textos normativos (mesmo porque o direito de propriedade, que textualmente pode ser exercido “da maneira mais absoluta”, é justamente o exemplo “clássico” de direito abusável). Como Virgilio Giorgianni bem expõe, a categorização de Josserand “sugere uma contaminação singular da consideração formal do direito subjetivo e uma consideração dogmática ou interpretativa dele”.[32] Em uma adequada consideração dogmática, falham todas as doutrinas de intencionalidade danosa (como falham, em geral, todas as doutrinas de abus de droit): elas não apresentam critérios para identificação de quando um direito pode ser exercido com intenção de causar dano, e quando não pode.

A segunda abordagem típica da tradição de abus de droit, de desvio de finalidade (classificação na qual incluo também as doutrinas abertamente moralistas e as axiologistas originadas em Giorgianni, e muito seguidas na literatura portuguesa), incide no mesmo problema. Josserand propõe, para identificação da finalidade de cada direito, que se busque o “motivo legítimo”, que seria o “precipitado visível” do “critério abstrato” da destinação social.[33] Já no início do século XX, René Demogue criticava a falta de avanço metódico dessa abordagem: “A teoria do abuso tem sido criticada pela variedade e imprecisão de suas fórmulas. Fala-se da intenção de prejudicar, que deve ser abandonada por ser de alcance muito geral, fala-se então de falta de interesse, mas essa fórmula pareceria muito ampla porque qualquer pessoa pode invocar um interesse, uma conveniência pessoal. Finalmente, tentar-se-ia falar de motivo legítimo, não havendo nada mais vago, além de a legitimidade poder variar com o tempo. Haveria então uma evolução em um sentido restritivo sem se chegar a nada de satisfatório”.[34] Essa falta de interesse no estabelecimento de critérios concretamente aplicáveis continua sendo, até hoje, uma marca das doutrinas franco-belgas de abus de droit, que seguem empenhadas em estabelecer tão somente um princípio de vedação ao abuso no mais alto nível de abstração.[35]

A tradição franco-belga de abus de droit caracteriza-se, assim, por uma abordagem definitória do abuso de direito (i.e., por uma abordagem que pouco ou nada se preocupa em estabelecer critérios para a identificação concreta de abusos como limites ao exercício dos direitos, e do correspondente controle dogmático dessa identificação: a “Schranken(Kontroll-)function [função de (controle dos) limites]”[36]).

Essa tradição de abus de droit exerceu uma influência bastante marcada na Alemanha, onde se desenvolveu como ideia de allgemeinen Rechtsmißbrauchsvorbehalts [reserva geral de abuso de direito], principalmente sob a liderança de Wolfgang Siebert (em uma primeira fase: Siebert I), e onde participou ativamente do projeto nazista (daí se falar no “passado marrom” das doutrinas de abuso de direito). Siebert I chegou a propor, no seu esboço para um Volksgesetzbuch [Código do Povo], um dispositivo que estabelecia que: “O abuso de direitos não se encontra juridicamente protegido. Em particular, age abusivamente […] quem na execução prossegue com uma rigidez que é grosseiramente contrária ao senso comum do povo”.[37] Esse dispositivo não chegou a ser necessário, porque a irrupção do “senso comum” nazista nas cláusulas gerais do Código Civil alemão foi um caminho mais fácil: segundo o próprio Siebert I: “A insegurança jurídica na aplicação das cláusulas gerais diminuirá mais e mais, quanto mais forte e segura for a concepção nacional-socialista alemã do Direito”.[38]

A tradição alemã de unzulässige Rechtsausübung

Com a queda do nazismo, Siebert viu-se obrigado a reformular completamente sua doutrina de abuso de direito. Em seus comentários ao § 242 do Código Civil alemão na edição de 1952 do Soergel Kommentar, o “novo” Siebert (agora: Siebert II) passou a demonstrar notável empenho na formulação de grupos de casos de aplicação das cláusulas gerais: segundo ele próprio, era necessário prevenir-se o perigo de que “a segurança jurídica seja minada pela falta de previsibilidade, e que o senso de equidade do juiz, até e incluindo a arbitrariedade, tome o lugar de normas gerais e claras”.[39] Quanta diferença para o juiz que deveria, para Siebert I, ser guiado pela ideologia nazista…

A proposta de formulação dos grupos de casos como controladora das cláusulas gerais (atribuída não apenas a Siebert II, mas também a Josef Esser e a Franz Wieacker) é justamente o marco da virada de uma abordagem definitória do abuso de direito, onde estão tanto o abus de droit de Josserand e o Rechtsmißbrauch de Siebert, para uma abordagem sistematizadora: a abordagem tipicamente germânica de allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung [proibição geral de exercício inadmissível do direito].

Otavio Luiz Rodrigues Jr. pontua que o poder conferido pelas cláusulas gerais aos juízes deve obrigar os juristas, em contrapartida, a “um permanente esforço para se conferir contornos e dar concretude às cláusulas gerais em sua aplicação aos casos práticos”.[40] Não há, assim, como se compreender a tradição tipicamente germânica de abuso de direito (unzulässige Rechtsausübung) sem se compreender antes o seu “passado marrom” — o que fica muito claro ao se ler um alerta de Frank von Look que sempre gosto de repetir: “a formulação de grupos de casos não era tão pronunciada naquela época como é hoje, o que facilitou a penetração das ideias nacional-socialistas na jurisprudência. Os atuais grupos diferenciados de casos […] não devem ser vistos apenas como uma ajuda para sistematizar o material da jurisprudência, mas ao mesmo tempo como um instrumento metódico para evitar abusos, como nos tempos do nacional-socialismo”.[41]

As principais abordagens dessa tradição alemã formuladora de grupos de casos (unzulässige Rechtsausübung) foram sempre as de violações à boa-fé objetiva e aos bons costumes, tendo como pontos de partida de um riquíssimo desenvolvimento dogmático especialmente os §§ 242 e 826 do Código Civil alemão). No entanto, deve-se apontar que mesmo a abordagem alemã de intencionalidade danosa (lá intitulada Schikaneverbot [proibição da chicana]), baseada no § 226, passou pelo que eu chamo de “transição objetivadora”,[42] com a formulação dogmática de numerosos grupos de casos para controle da sua aplicação.

A formulação de grupos de casos como dogmática necessária do abuso de direito

Foi ante esse cenário das duas tradições,[43] que propus, em meu livro Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung, que sigamos todos o grito de batalha de Joachim Rückert: “Fallvergleich! [comparação de casos!]”. A formulação dogmática de grupos de casos de abuso de direito é a única maneira de não repetimos o erro de concedermos aos juízes o poder de arbitrariamente imporem a sua particular ideologia. As consequências desse último modo de operacionalizar o abuso de direito já são conhecidas, e certamente não são nada desejáveis.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

** Foto do dirigível Clément-Bayard deixando o hangar. Créditos: 1910_dirigeable_picardie.jpg (464×294) (free.fr)


[1] Quando Ernest Porcherot adotou pela primeira vez a expressão “abus de droit” em sua tese de doutorado homônima: Ernest Porcherot, De l’abus du droit(tese de doutorado, Université Dijon, 1901).

[2] Holger Fleischer, “Der Rechtsmißbrauch zwischen Gemeineuropäischem Privatrecht und Gemeinschaftsprivatrecht,” JuristenZeitung 58, no. 18 (19 set. 2003): 866.

[3] Federico Losurdo, “The Prohibition of the Abuse of Rights in the Judicial Dialogue in Europe” (paper, Summer School in European Public Law (Transnational Judicial Dialogue in Europe), set. 2009), 6.

[4] Hans-Ullrich Gallwas, Der Mißbrauch von Grundrechten (Berlin: Duncker & Humblot, 1967), 173.

[5] Cour de Colmar, May 2, 1855, Arrêt du 2 mai 1855. Jurisprudence générale du royaume en matière civile, commerciale et criminelle 1er cahier, 2e partie (1856): 9–10 (Fr.).

[6] Cass., Aug. 3, 1915, Arrêt du 3 août 1915, Dalloz. Jurisprudence générale: Recueil Périodique et critique de jurisprudence, de législation et de doctrine en matière civile, commerciale, criminelle, administrative et de droit publique 1re partie (1917): 79 (Fr.).

[7] Blaise Pascal, Les pensées de Pascal: reproduites d’après le texte autographe, disposées selon le plan primitif et suivies des Opuscules (Paris: P. Lethielleux, 1896), 70.

[8] Judith Martins-Costa, “Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa-Fé,” in Direito Civil Contemporâneo: Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional – Anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro, ed. Gustavo Tepedino (São Paulo: Atlas, 2008), 76.

[9] Não pode haver uma finalidade simultaneamente econômica e social?

[10] Thomas Gächter, “Verständnis und Wandel des subjektiven Privatrechts und des Rechtsmissbrauchsverbots,” in ZGB gestern – heute – morgen: Festgabe zum schweizerischen Juristentag 2007, ed. Daniel Girsberger (Zurich: Schulthess, 2007), 92.

[11] Como bem observado por Philippe Durand, a prática mostra que, quando se fala de transgressão do “espírito” dos direitos, apenas alguns “espiritualistas” parecem poder identificá-lo. Porém, isso gera a desconfiança de que eles não identificam espírito nenhum, mas apenas criam-no arbitrariamente (Philippe Durand, “L’abus de droit: bête du Gévaudan ou Frankenstein?,” La Revue administrative 56, no. 334 (jul. 2003): 379).

[12] O ‘marrom’ é referência à cor do uniforme dos membros do Partido Nacional-
-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), como explica Thiago Reis, em nota de tradução a: Joachim Rückert, “O BGB – um Código que não teve Oportunidade?,” trad. Thiago Reis, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS,no. 34 (31 ago. 2016): 10 [nota de rodapé 14].

[13] Philipp Eichenhofer, Rechtsmissbrauch: zu Geschichte und Theorie einer Figur des Europäischen Privatrechts (Tübingen: Mohr Siebeck, 2019), 3.

[14] Com a provável única exceção de Lucien Campion, que, de maneira completamente desviante da mediatriz, vê o abuso de direito como o rompimento do equilíbrio dos interesses em presença (Lucien Campion, Théorie de l’abus des droits: de l’exercice antisocial des droits subjectifs (Bruxelles: Établissements Émile Bruylant; Paris: Librairie Générale de Droit, 1925), 180).

[15] Para se ter noção da complexidade da específica tarefa de tradução, José Lamego verte Tatbestand para o português, em uma mesma obra, de ao menos cinco maneiras diferentes (“estatuição”, “situação de fato”, “previsão normativa”, “previsão”, “situação factual típica”), e chega mesmo a simplesmente omiti-la em um trecho: “Kaufmann dagegen meint mit dem ‘analogischen Denken der Rechtswissenschaft’ nicht einen Vergleich zweier Sachverhalte, sondern den Vergleich eines Sachverhalts mit dem Tatbestand einer Norm” (Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6. neubearb. Aufl. (Berlin, Heidelberg, New York: Springer, 1991), 136) é traduzido apenas como “Kaufmann, pelo contrário, significa com o ‘pensamento analógico na ciência jurídica’ não uma comparação entre duas situações de facto, mas o cotejo de uma situação de facto com [aqui a omissão] uma norma” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, trad. José Lamego, 3. ed. (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997), 188).

[16] Fernando José Bronze, Metodologia do Direito (Coimbra: Coimbra Jurídica, 2020), 319 [nota de rodapé. 1194].

[17] Karl Engisch, Einführung in das juristische Denken, 12. aktualisierte Aufl., herausgegeben und bearbeitet von Prof. Dr. Thomas Würtenberger und Dr. Dirk Otto (Stuttgart: Kohlhammer), 2018.

[18] Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras Constitucionais, 3. ed. (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019), 4–5.

[19] Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 11. ed. rev., atual. e ampl. (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014), 313.

[20] Sobre a recepção apenas parcial da Hermenêutica Filosófica no Direito — com exceção das realizadas por Arthur Kaufmann e por Ronald Dworkin (acrescento: também por Lênio Streck) —, cf.: José Lamego, Hermenêutica e Jurisprudência: Análise de uma “Recepção” (Lisboa: Fragmentos, 1990), 90 ff.

[21] Tobias Leidner, Rechtsmissbrauch im Zivilprozess (Berlin: Duncker & Humblot, 2019), 137 ff.

[22] Nada obstante, já demonstrei que Friedrich Müller admite, sim, a interpretação ‘em abstrato’ dos textos normativos — portanto não há incompatibilidade teórica entre a Doutrina Estruturante do Direito e as doutrinas de abuso de direito —: Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto, Abuse of Fundamental Rights: From the Private Law Doctrines to a Constitutional Theory (Fortaleza: Independently Published, 2023), 144–72.

[23] Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechte und Privatrecht: Eine Zwischenbilanz. Stark erweiterte Fassung des Vortrags gehalten vor der Juristischen Gesellschaft zu Berlin am 10. Juni 1998 (Berlin: De Gruyter, 1999), 47.

[24] Provavelmente, a formulação mais conhecida desse mecanismo, no Brasil, é a de Robert Alexy, quando categoriza a sua teoria dos princípios como uma das “teorias ampliativas do Tatbestand [weite Tatbestandstheorie]” (Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 7. Aufl. (Berlin: Suhrkamp, 2015), 278–99). Alexy trabalha com um mecanismo de inclusão (Einschluss), do texto normativo para o Tatbestand: uma interpretação alargada dos conceitos no “campo semântico” (i.e., resolver os casos de ambiguidade, vagueza e abertura valorativa do texto normativo de maneira a incluir no Tatbestand tudo que seja objeto de, ao menos, dúvida) (Robert Alexy, “Die logische Analyse juristischer Entscheidungen,” in Recht, Vernunft, Diskurs: Studien zur Rechtsphilosophie (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995), 24–5).

[25] Code Civil, Légifrance (Fr.).

[26] Jung, Peter. “Die Generalklausel im deutschen und französischen Vertragsrecht”. In Die Generalklausel im Europäischen Privatrecht: Zur Leistungsfähigkeit der deutschen Wissenschaft aus romanischer Perspektive, edited byChristian Baldus and Peter-Christian Müller-Graff. München: Sellier European Law Publishers, 2006, 58–9 ; Fabrizio Piraino, “Il divieto di abuso del diritto,” Europa e diritto privato 1 (2013): 104.

[27] A “Gebrauchsdogmatik [dogmática de utilização]” permite a rápida tomada de decisões no caso singular, sem necessidade de recurso a princípios fundamentais (Rolf Stürner, “Das Zivilrecht der Moderne und die Bedeutung der Rechtsdogmatik,” JuristenZeitung 67, no. 1 (2012): 11–2). De maneira semelhante: Claudia Schubert, “§ 242 Leistung nach Treu und Glauben,” in Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, ed. Wolfgang Krüger, 8 Aufl. (Berlin: C. H. Beck, 2019), Rn. 41).

[28] Cass., Aug. 3, 1915, Arrêt du 3 août 1915, Dalloz. Jurisprudence générale: Recueil Périodique et critique de jurisprudence, de législation et de doctrine en matière civile, commerciale, criminelle, administrative et de droit publique 1re partie (1917): 79 (Fr.).

[29] Code Civil, Légifrance (Fr.).

[30] Code Civil, Légifrance (Fr.).

[31] Louis Josserand, De l’esprit des droits et leur relativité: Théorie dite de l’Abus des Droits, 10ème éd., revue et mise au courant de la législation, de la jurisprudence, de la doctrine et du droit comparé (Paris: Librairie Dalloz, 1939), 416 [nota de rodapé 2].

[32] Virgilio Giorgianni, L’abuso del diritto nella teoria della norma giuridica (Milano: Dott. A. Giuffrè, 1963), 100.

[33] Josserand, De l’esprit des droits, 400–15.

[34] René Demogue, Traité des obligations en général (Paris: Arthur Rousseau, 1923), 371–2.

[35] Pierre-Emmanuel Moyse, “L’abus de droit: l’anténorme – Partie II,” McGill Law Journal 58, no. 1 (2012): 6.

[36] Lars Böttcher, “§ 242 Leistung nach Treu und Glauben,” in Erman Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar: mit AGG, EGBGB (Auszug), ErbbauRG, LPartG, ProdHaftG, VBVG, VersAusglG und WEG, ed. Harm Peter Westermann, Barbara Grunewald and Georg Maier-Reimer, 16., neu bearbeitete Aufl. (Köln: Dr. Otto Schmidt, 2020), Rn. 18.

[37] Dirk Looschelders e Dirk Olzen, “§ 242 Leistung nach Treu und Glauben,” in J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, ed. Dirk Olzen et al., Neubearb. 2019 Aufl. (Berlin: de Gruyter; Köln: Otto Schmidt, 28 fev. 2022), Rn. 68.

[38] apud Thomas Duve e Hans-Peter Haferkamp, “§ 242. Leistung nach Treu und Glauben,” in Historisch-Kritischer Kommentar zum BGB [HKK-BGB], ed. Mathias Schmoeckel, Joachim Rückert and Reinhard Zimmermann (Tübingen: Mohr Siebeck, 2007), 378.

[39] Wolfgang Siebert, “§ 242 BGB,” in Soergel Kommentar, 8 Aufl. (Stuttgart: Kohlhammer, 1952), 576 apud Philipp Eichenhofer, Rechtsmissbrauch: zu Geschichte und Theorie einer Figur des Europäischen Privatrechts (Tübingen: Mohr Siebeck, 2019), 161.

[40] Otavio Luiz Rodrigues Jr., Direito Civil Contemporâneo: Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais, 2. ed., rev., atual. e ampl. (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019), § 58.

[41] Frank von Look, “Die zivilrechtlichen Generalklauseln in der Rechtsprechung,” Juristische Rundschau, no. 3 (March 2000): 97.

[42] Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto, Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung (Fortaleza: Independently Published, 2023), 201 [nota de rodapé 604].

[43] Às quais se pode acrescentar ainda uma terceira, novíssima, de abuso por violação a ‘princípios’ (entendidos no modo bastante peculiar da teoria dos princípios de Robert Alexy). Especialmente sobre a concepção de Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero (os principais expoentes desta abordagem), Paolo Comanducci afirma que: “Atienza e Ruiz Manero apresentam uma redefinição do abuso de direito — o que, de certa forma, restringe a definição do conceito que é dado pelos usos efetivos da locução” (Paolo Comanducci, “Abuso del diritto e interpretazione giuridica,” in L’abuso del diritto: teoria, storia e ambiti disciplinari, ed. Vito Velluzi (Pisa: ETS, 2012), 25). Essa novíssima tradição é teoricamente insustentável, como mostro em: Peixoto, Abuse of Rights, 234–50.

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